sábado, 3 de junho de 2023

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38)

Uma experiência de mais de um dia

John Wesley era um jovem pastor anglicano, que queria mudar a si mesmo. Ele se perguntava pela verdadeira fé, que não tinha; pela verdadeira confiança, que nunca demonstrara. Em busca de respostas, ele viajou para a América, entrevistou-se com morávios, judeus, espanhóis. Leu pietistas, aprendeu a arte do bem viver e do bem morrer, estudou a Bíblia, defrontou-se com pregadores leigos. Wesley dizia para si mesmo e para seus companheiros de jugo coisas que soam como: “Eu quero amar a Deus, mas não o amo. Quero ser um bom cristão, mas não o sou.” Peter Bohler, um morávio, até escreveu em seu diário que a vantagem que Wesley lhe demonstrou é que ele era sincero. Diante da busca que tanto inflamava seu coração, Wesley relata em seu diário: 

“No dia seguinte, pois, ele (Peter Böhler), veio outra vez, com três outros, e todos testificaram sua experiência pessoal, unânimes no sentido de ser a verdadeira e viva fé em Cristo inseparável do sentimento de perdão de todos os pecados passados e de libertação de todos os pecados presentes. Aduziram a uma só voz, que essa fé é um dom, um livre dom de Deus; e que Ele certamente o concederia a toda alma que profunda e perseverantemente o buscasse. Eu não estava perfeitamente convencido, mas pela graça de Deus resolvi buscar esse dom até o fim, primeiro — renunciando, em absoluto, a toda dependência, total ou parcial, de minhas próprias obras ou justiça, nas quais havia realmente fundado minha esperança de salvação, embora não a conhecesse desde a mocidade; segundo — acrescentando ao uso constante de todos os outros meios de graça, a súplica insistente por esse objetivo, isto é, pela justificação, graça salvadora e plena confiança no sangue de Cristo derramado por mim, confiança posta nele como meu Cristo, minha única justificação, santificação e redenção.

Continuei assim a buscá-lo (embora com estranha indiferença, negligência, frieza e desusadas e frequentes recaídas em pecado), até quarta-feira, 24 de maio. Penso que era cerca de cinco horas da manhã quando abri meu Testamento nestas palavras: “Foram-nos dadas excessivamente grandes e preciosas promessas, de que seremos participantes da natureza divina”. (2Pd 1.4). Quando estava a sair, abri outra vez o livro nestas palavras: “Não estás longe do reino de Deus”. À tarde me pediram fosse à igreja de S. Paulo. A antífona era: “Das profundezas te clamei, ó Senhor; Senhor, ouve minha voz. Oh! que teus ouvidos considerem bem a voz do meu clamor. Se tu, Senhor, fores ao extremo de notar o que é feito perversamente, ó Senhor, quem subsistirá em tua presença? Porque em ti há misericórdia; por isso tu serás temido. Ó Israel, confia no Senhor; porque no Senhor há misericórdia, e nele a salvação é abundante. E ele redimirá a Israel de todos os seus pecados”.

Pela tardinha fui de muito má vontade a uma sociedade à rua Aldersgate, onde alguém estava lendo o prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos. Cerca de um quarto para as nove, enquanto ele descrevia a mudança que Deus opera no coração através da fé em Cristo, senti meu coração aquecido de maneira estranha. Senti e confiei em Cristo, Cristo só, para a salvação; e foi-me dada a segurança de que Ele havia tirado meus pecados, salvando-me da lei do pecado e da morte”. (Diário de John Wesley)

Então, ele foi de má-vontade a uma reunião na Rua Aldersgate. E lá, ele ouviu alguém ler o que Lutero escreveu, como Prefácio à Epístola de Paulo aos Romanos. Entre outras palavras de Lutero, Wesley ouviu:

“Fé não é aquela ilusão humana e sonho que algumas pessoas pensam que é. Quando elas ouvem e falam muito sobre a fé e ainda veem que nenhum progresso moral e nenhumas boas obras resultam disso, elas caem no erro e dizem: "Fé não é tudo. Você deve fazer obras, se quer ser virtuoso e ir ao céu". O resultado é que, quando elas ouvem o Evangelho, tropeçam e fazem para si mesmas, com suas próprias forças, um conceito em seus corações que diz: "Eu creio". Este conceito, pensam ser fé verdadeira. Mas desde que isso é uma fabricação humana e pensamento e não uma experiência do coração. Isso não sucede em nada, e então segue-se nenhum progresso.

Fé é um trabalho de Deus em nós, o qual nos muda e nos traz a nascer um novo, proveniente de Deus (cf João 1). Ela mata o velho Adão, nos faz pessoas completamente diferentes no coração, pensamento, sentido, e todas nossas forças. E traz o Espírito Santo com ela. Como é viva, criativa, ativa, cheia de poder, a fé! É impossível que a fé em alguma ocasião faça parar o fazer bem. A fé não pergunta se boas obras estão para serem feitas. Ao contrário, antes que ela seja questionada, já as fez. Ela está sempre ativa. Seja quem for que não faça tais obras está sem fé; ele anda se apalpando e se examinando em busca de fé e boas obras, mas não sabe o que a fé ou boas obras são. Mesmo assim, tagarela com muitas palavras sobre fé e boas obras.

A fé é uma confiança viva, inabalável na graça de Deus; é tão certa, que alguém poderia morrer mil vezes por ela. Esse tipo de confiança e conhecimento da graça de Deus faz uma pessoa cheia de alegria, confiante e feliz, com consideração a Deus e a todas criaturas. Isso é o que o Espírito Santo faz pela fé. Por meio da fé, uma pessoa fará bem a todos sem uso de força, espontânea e alegremente. Servirá a todos, sofrerá tudo pelo amor e louvor a Deus, o qual lhe tem mostrado tal graça. É tão impossível separar obras da fé como separar as chamas do brilho do fogo.” (trecho do Prefácio de Lutero à Epístola aos Romanos)

Então Wesley entendeu que estivera o tempo todo buscando em si mesmo algo que só Deus tinha a oferecer. E mais: que Deus estava diante dele, com os dedos abertos, deixando escorrer por entre eles um rio de graça e amor sem fim. Foi então que Wesley creu, e num minuto ele e Lutero superaram a barreira de tempo e espaço que os separava, e fizeram-se irmãos na descoberta de um Deus que é amor. Foi então que Wesley confiou. E porque ele creu, e porque pregou, e porque testemunhou e repartiu o calor de seu coração com todos a quem viu, é que nós também nos tornamos herdeiros e herdeiras da reforma.

O justo viverá pela sua fé

Habacuque, o primeiro a fazer esta afirmação, a faz num contexto atrelado a uma sobrevivência iminente frente a um império que ataca. Só é possível sobreviver por causa da fé e para tê-la é preciso ser justo. A justiça – Tsedaká – no contexto judaico é uma prática concreta, reveladora do caráter de quem a pratica. Por isso muitas vezes o termo é traduzido por caridade. Era preciso que o judeu realmente consciente de sua fé a fizesse perceptível e notável por meio daquilo que fazia no dia a dia, particularmente em favor de quem mais precisasse. 

A justiça pela fé encontra seu fundamento na fidelidade de Deus. Ele é confiável em suas promessas – contexto no qual o autor de Hebreus insere a frase retomada de Habacuque. Quando a fidelidade de Deus encontra eco na fé humana, o milagre torna-se possível: a justificação. Esse é o contexto apresentado por Paulo em sua fala em Romanos. A justiça de Deus é manifesta, possibilitando o cumprimento da lei, não por obrigação ou constrangimento, mas pela liberdade.

Podemos ver que as leituras neotestamentárias do texto de Habacuque enxergam a fé como uma questão agora que vai do presente à eternidade. Dizem que a primeira vez que Lutero entendeu o significado de ser justificado pela fé foi quando ele estava subindo as escadarias de Pilatos e ouviu nitidamente essas palavras: “O justo viverá pela sua fé”. Ele, envergonhado, levantou-se dali, entendendo que nenhuma penitência poderia subsistir no lugar da verdadeira fé e que jamais o ser humano poderia por si mesmo adquirir a justiça divina ou sentir-se salvo.

O que tem isso a ver conosco hoje?

Eu fico muito impressionada com o relato desses homens de Deus do passado e também das mulheres que, por raridade de poderem escrever suas narrativas e fazê-lo em primeira pessoa, é algo mais escasso para nós como resgate histórico. Ao invés de focar nos resultados de suas experiências, porém, eu gostaria de destacar algo que me parece similar em todas essas histórias e que talvez nos falte hoje, quando pensamos em uma igreja reformada, sempre reformando...

Sua profunda insatisfação consigo mesmos – o senso de inadequação diante do mundo e do sentido de sua existência era algo que chega a ser uma dor física para muitos desses reformadores. Eles estavam sinceramente indagando pela melhor forma de viver e de agir em nome de Deus neste mundo. Não eram movidos por suas crenças, talvez muito mais por suas dúvidas. Não eram movidos por suas capacidades, muito mais por seu sentimento de serem “gauches na vida”, como diz o poeta. Não se sentiam confortáveis em seu status clerical ou social, mas isso chegava a ser um fardo para eles. Então, todas as mais importantes reformas e avivamentos que aconteceram no mundo começaram, de certa forma, porque alguém estava se sentindo inadequado, incapaz e limitado. Isso é uma importante lição e não pode ser esquecida.

Seu agudo senso de existência no mundo – além do aspecto pessoal, esses homens e mulheres percebiam que o mundo estava distanciado dos propósitos divinos. Não se tratava apenas de teologia. Eles estavam atentos a tudo o que acontecia ao redor, entendendo que a justiça divina é concreta e contextual. Onde estava a pregação metodista? Nas prisões, nas fábricas, no parlamento apoiando leis libertárias, nos sindicatos, na luta pela abolição, no discipulado focado na transformação das situações de vida como bebidas, violência, jogatina e combate aos vícios, na educação para promover o pensamento e o discernimento... Uma reforma que não transforma o mundo serve para quê? Perguntariam eles a nós hoje, no centro de nossos templos cada vez maiores e mais tecnológicos e cada vez mais longe das ruas. Tudo, absolutamente tudo lhes interessava e despertava atenção como espaço da atuação divina na vida humana.

Sua profunda sede de Deus – O povo antigo tinha essa boa mania de escrever suas orações. Por isso a gente pode conhecer seu estado de alma. A angústia que muitos deles revelam pela presença de Deus é comovente. Lutero, em 1527, escreveu:  “Vê, Senhor, que sou um vaso que carece muito de ser preenchido. Meu Senhor, enche o vaso, pois sou fraco na fé. Fortalece-me, pois sou frio no amor. Aquece-me e torna-me quente, para que meu amor transborde para o próximo. Não tenho fé robusta e forte, acontece que sou acometido de dúvidas, não podendo confiar em ti inteiramente. Ó Senhor, ajuda-me, faze crescer minha fé e confiança. (...) Por isso quero ficar contigo, não preciso dar de mim para ti: de ti posso receber. Amém.” Muitas vezes nós estamos hoje tão cercados e cercadas de certezas, nos sentindo em muito superiores aos demais homens e mulheres. Nosso conhecimento nos cega, nossa teologia nos coloca em vaidade, nossa história nos enche de orgulho, mas nossa alma não tem sede de Deus. Nossas certezas são  todas exteriores e não fruto da experiência. Se fôssemos realmente colocados à prova, talvez muitos de nós, cristãos do século 20, veríamos que não somos capazes de ser justos ou de viver por causa da fé.


Então, precisamos de reforma e de corações aquecidos...


sexta-feira, 26 de agosto de 2022

Seguir a Jesus e o processo da maturidade espiritual (pensando a partir do livro "Em seus passos, o que faria Jesus")


Max Lucado, em um de seus textos, fala de um menino seguindo os passos do pai. Ele tem as pernas curtas e segue seu pai pela areia da praia. Ele observa atentamente as pegadas do pai e se estica para que seus pés pequenos se encaixem nas pegadas no chão. E quando a areia molha, ele olha rapidamente para cima, acompanhando a direção do corpo do pai. E ele sorri, dando pequenos saltos.

Como é fácil a imitação quando somos pequenos! Nossa admiração por alguém – um pai, uma mãe, um professor – nos faz rapidamente imitar aquela pessoa. Falamos igual, andamos igual, vestimos igual. Gostamos das mesmas coisas e queremos, intencionalmente, gerar identificação. Nossa alegria e prazer é quando alguém nos diz: “Você é cara do fulano”; “Você me lembra fulano de tal”.

Mas depois de algum tempo, especialmente quando entramos na adolescência, vem o desejo – normal – de ter uma identidade própria. Não queremos mais ser parecidos com ninguém. Ansiamos por uma singularidade, por algo que somente a nós pertença. Quando desenvolvemos bem esta fase, podemos perceber que a identidade saudável possui uma parte de autonomia e uma parte de imitação. É como se a criança crescesse seguindo seu pai na praia e logo não andasse mais correndo atrás dele, mas imitasse paripasso, andando a seu lado. É isso o que Deus anseia para nós. Uma imitação madura de Cristo.

Quando a identificação, porém, não é boa, corremos o risco de gerar uma identidade baseada na total rejeição de tudo o que até então imitamos e, a depender do caso, isso pode melhorar ou piorar a nossa situação. É como Manassés, o rei do Antigo Testamento, que decidiu negar toda a tradição de Davi. E seu filho, Josias, que decide retomá-la. Trata-se de saber como e a quem imitar... isso requer maturidade.

Stanley Jones conta a seguinte história em um dos seus textos: “Um bispo pomposo que visitava uma aldeia na Índia perguntou a algumas pessoas candidatas ao batismo: ‘O que é ser cristão?’, e esperava uma resposta teológica. Em vez disso, elas disseram: ‘Viver como o senhor Murray’. O senhor Murray era o missionário que lhes ensinava. A palavra do cristianismo havia-se feito carne nele. Foi assim em Jesus.” É preciso a imitação para chegar à essência do que é o Cristianismo.

Imitar Jesus em quê?

Quando se fala em imitar Jesus, muita gente quer fazer isso na parte boa da coisa. Adoraríamos se pudéssemos ter o poder curador de Cristo. Admiramos sua sagacidade e respostas rápidas. Gostaríamos de sua inteligência nas Escrituras e certamente sua inteligência emocional nos provoca uma boa inveja... mas não gostaríamos de ter de imitá-lo em seu sofrimento, em sua entrega, em sua humildade, em sua profunda consciência de serviço, em sua abnegação. Mas é aí que está, porque não é possível uma coisa sem a outra.

A criança que imita o pai em seu modo de andar, em seu vocabulário e em seu comportamento logo apreenderá do seu caráter. Se o pai é bom, é provável que o filho desenvolva valores peculiares à bondade. Se a mãe é servidora e atenta, sua filha certamente o será. É fácil observar.

Mas há outras coisas que um pai ou uma mãe, por melhores que sejam, não poderão ensinar. Há caminhos que os filhos e filhas trilharão sozinhos e aí é que aparece a maturidade nas decisões. E chega o tempo do “custe o que custar”.

Os cristãos e cristãs não foram reconhecidos assim em Antioquia por causa dos milagres realizados ou pelo aspecto sobrenatural de sua vida. Era na prática do dia a dia que geravam interesse e curiosidade. E quando as pessoas entendiam quem era Jesus, era como se dissessem: “Ah, agora entendi tudo! É por isso que eles agem assim. É por isso que são como são... eles são imitadores de Cristo”. Tinha a ver com comportamentos e posturas que lembravam o mestre e que eram fruto de seu caráter.

Jesus seria um negociante como eu?

 No livro “Em seus passos, o que faria Jesus”, o autor nos conta desse propósito assumido por uma igreja depois da experiência marcante de ter um estranho desafiando a sua forma de viver a fé. E eles decidem: “Nosso alvo será agir da forma como ele agiria se estivesse no nosso lugar, quaisquer que sejam os resultados imediatos”. Vemos isso na vida do pastor e de diversos membros. E os desafios práticos logo aparecem...

A partir do capítulo 3, temos o Norman. Ele é um jornalista, um dono de um jornal. Ao aceitar o desafio proposto pelo pastor, primeiramente ele se vê diante da escolha ética do que publicar no jornal. Na experiência dele, colocar uma notícia sobre uma luta de boxe contrariava os valores de Cristo. Talvez porque esse tipo de esporte envolve uma violência? Apesar de isso não ficar muito esclarecido no livro, há muitas questões éticas que poderíamos levantar para que a dúvida sobre publicar ou não a notícia fosse tão dramática para o autor... Naquele tempo, o esporte não tinha tantas regras como hoje em dia, mas logo se descobriu que o boxe pode provocar tantos problemas mentais que diversos campeões antigos morriam em decorrência de Alzheimer e outras formas de demência. Também encontramos nesse tipo de esporte uma série de vícios secundários, como apostas, por exemplo.

O cristianismo em geral tem dificuldades com o tema dos jogos por esses motivos gerais de serem “de azar” – o que poderia estimular a dependência que gerava grandes perdas financeiras e até a quebradeira de muitos pais de família. Apesar de isso não ficar claro no livro, gostaria de imaginar o cenário em que o autor do livro está escrevendo. A gente até se lembra de um manifesto escrito por João Wesley no seu tempo, em que ele questiona o aumento dos preços dos alimentos e atribui muito daquilo a coisas que não apareciam à primeira vista, como a produção de bebidas destiladas e até a criação de cavalos por pessoas da alta sociedade!

Imitar então, a Jesus, neste caso, é perguntar se aquilo que eu estou fazendo contribui ou não para a rede de coisas que causam danos às pessoas. Stanley Jones, no livro “O caminho”, afirma que “luxos são coisas que eu tenho às custas da dificuldade de outras pessoas”. Se a riqueza que eu posso ou a facilidade que eu tenho custa a alguém algo essencial, então seguir a Jesus significa abrir mão dessa coisa ou pelo menos uma profunda consciência de que uma injustiça está acontecendo aqui e uma proposição de agir de modo a superar isso.

O dono do jornal entende que, de algum modo, aquela notícia é uma forma fraudulenta de fazer dinheiro. E decide agir de acordo com o que ele pensa que Jesus faria. Ele imagina que isso deve trazer uma certa confusão, mas de verdade ele não está preparado para as reais consequências. Ele tenta usar sua riqueza para sustentar os meninos de rua que vendem seus exemplares, mas logo depois percebe que não vai escapar às consequências de seguir a Jesus. Não se podem evitar os danos desse seguimento.

Mas ele decide ir adiante. E começa a ver que os anúncios que publica também não combinam com o seguimento de Cristo. Ele decide cortá-los. Eu me lembro de uma palestra do Summit em que o pregador falava sobre o texto de Jesus com os cambistas do templo. Ele falou o seguinte: “Jesus derrubou as mesas dos cambistas que estavam no lugar religioso. Corremos o risco de estarmos nós mesmos nessas mesas. E é muito difícil derrubar as mesas nas quais estamos confortavelmente sentados”.

Eu sofreria o dano em meu trabalho, em meu lucro e em minha reputação para imitar Jesus? Como é a minha relação com as pessoas com quem me relaciono no meu trabalho? Eu as sirvo ou eu me sirvo delas? Eu ajo com justiça? Trato com respeito? Considero suas realidades? Aos meus superiores, como me dirijo? Com despeito, engano, mentiras? Tento me safar de alguma coisa que pode me prejudicar? São perguntas a nos fazer no momento da confissão de pecados. São perguntas a fazer no dia a dia. Imitar a Jesus significa perguntar pelas verdadeiras motivações que temos no dia a dia, e não na forma religiosa como nos comportamos quando estamos no ambiente do sagrado.

"Depois de pedirmos ao Espírito para nos dizer o que Jesus faria e termos recebido uma resposta para isso, devemos agir independentemente dos resultados para nós mesmos." (from "Em seus passos o que faria Jesus" by Charles Sheldon)

Quando recebemos o desafio de seguir a Jesus no discipulado, a primeira coisa que sentimos é o desconforto. Com as nossas vontades, com os nossos desejos, com a nossa chamada “zona de conforto”. Sabendo disso, Jesus age conosco com amor. Ele nos desafia a aprender com o que os americanos chamam de “baby steps” – pequenos passos, passos de bebê.

Quando ele estava para ir à cruz, ele também nos dá um precioso legado para que possamos atingir a maturidade de não apenas pisar nas pegadas dele, como a criança pequena, mas a crescer ao ponto de “andar no mesmo ritmo” – a imitação madura de Cristo. Ele afirma: “Eu ainda tenho muitas verdades que desejo vos dizer, mas seria demais para o vosso entendimento neste momento. No entanto, quando o Espírito da verdade vier, Ele vos guiará em toda a verdade; porque não falará por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido e vos revelará tudo o que está por vir.”

Este texto é usado no livro “Em seus passos”, quando uma personagem, membro da igreja, pergunta ao pastor: "Estou um pouco em dúvida quanto à fonte de nosso conhecimento sobre o que Jesus faria. Quem pode decidir por mim exatamente o que Ele faria no meu caso? É uma época diferente. Existem muitas questões desconcertantes em nossa civilização que não são mencionados nos ensinamentos de Jesus. Como vou dizer o que Ele faria? "" (from "Em seus passos o que faria Jesus" by Charles Sheldon).

Existem hoje várias coisas que não existiam na época de Jesus. Muitas que não existiam quando Sheldon escreveu seu livro. Mas a imitação madura de Cristo vai além da imitação de seus atos e se concentra no seu caráter. Este caráter é revelado pelo Espírito Santo. Há coisas que Cristo não exigirá de seus discípulos num determinado momento, como ele disse, “porque é demais para nós”. É como uma criança que aprende primeiro que apenas os números pares são divisíveis por dois, mas depois que se habita à ideia dos números inteiros compreende o conceito dos números fracionados. Quanto mais ela se desenvolve no conhecimento, mais capacidade tem de absorver conhecimentos novos. Imitar a Jesus é um processo de amadurecimento. Independente de nossa idade. Podemos ter jovens pequenos que sabem muito mais imitar a Cristo do que adultos e até gente de cabeça branca. Qual talvez seja a diferença? O desprendimento.

O pastor Maxwell diz: "Depois de pedirmos ao Espírito para nos dizer o que Jesus faria e termos recebido uma resposta para isso, devemos agir independentemente dos resultados para nós mesmos." (from "Em seus passos o que faria Jesus" by Charles Sheldon). A maturidade está no final da frase: “independentemente dos resultados para nós mesmos”.

Estamos quase sempre querendo aquilo que nos agrada, nos dá segurança ou nos promove, nos coloca em evidência e gera admiração nos outros. Seguir a Cristo significa tomar a cruz e isso pode implicar em fracassar, em nada dar certo ou sentir-se do lado errado dos acontecimentos. De fato, para a maioria dos cristãos fiéis, significou na história até mesmo a morte. Não é uma maturidade que possamos ter de nós mesmos para tanto. É por isso que Jesus mesmo disse: “Eu não posso dizer agora. Mas o Espírito Santo virá. Ele vai fazer vocês entenderem.”

Como ser humano, Jesus não poderia estar dentro de nós para nos dar a coragem necessária neste passo de fé. Como Espírito, ele está em toda parte e dentro de nós em todo o tempo. Ele é a voz suprema da nossa consciência, nos ensinando a sair de trás no seguimento e a entrar no ritmo dos passos de Jesus. Ele nos ensina a identidade autêntica, que vai da imitação mecânica para a transformação profunda. Só segue a Jesus de modo maduro quem passa pela conversão. E a conversão é um trabalho do Espírito. Ela não se resume a erguer a mão, batizar-se e integrar uma igreja. A conversão, como o livro que lemos também nos mostra, se concentra em permanecer nele.

Desafio

Eu sei que se nós orarmos o Espírito nos revelará o que devemos fazer. O que falta ou o que está em excesso, nos travando e nos prendendo. Olhamos para esta igreja e vemos que, se ouvíssemos mais ao Senhor, certamente algo a mais estaria diferente em nós.

Quero orar para que Deus remova nosso medo de ouvi-lo. Temos medo do que ele possa dizer. Temos medo porque não poderemos “desouvir”, mas isso implicará responsabilidade. Talvez não esteja em nós a força para realizar tudo. Talvez nossa tarefa seja abrir espaço, incentivar e estimular. Seja sair do lugar de sabe-tudo para fazer boas perguntas. Seja o de nos tornarmos financiadores na vida de outros e outras. Eu não sei. Mas a forma como realizamos os negócios diários esteja diretamente ligado à forma como negociamos na vida da fé ou com Deus. Devemos refletir sobre isso e tomar a melhor decisão. A decisão da maturidade e da imitação autônoma, que não depende de aprovação humana mas que faz ecoar o céu dentro de nós. Que Deus nos abençoe.

terça-feira, 3 de maio de 2022

A filha da desgraça

Em 1 Crônicas 7.20-29, é contada a história trágica da família de Efraim, que perdeu seus filhos depois de uma invasão filisteia para o roubo dos gados. O pai, em luto, ficou inconsolável. Depois de um tempo, teve um filho com sua esposa. O nome Berias significa desgraça.

Era muito comum que os pais judeus dessem nomes aos filhos relacionados com os eventos em torno do seu nascimento. Se isso pudesse alegrar os filhos, por um lado, com nomes que lembravam vitórias e conquistas, imagino as marcas que nomes como Jacó, Jabez e Berias poderiam trazer aos seus possuidores. Mas assim como Jacó e Jabez, Berias também não se limitou ao que seu nome queria dizer. Num tempo de dificuldades, ele teve uma filha, chamada Será, Sheerá, cuja leitura também pode ser Sara, que significa tanto "parente" quanto "nobre".

A desgraça teve descendência nobre. E forte. Sheerá se tornou uma construtora de aldeias. Ela edificou três cidades: Bete Horom de Baixo, Bete Horom de Cima e Uzém Seerá. Na época de Salomão, ele reedificou ambas as cidades de Bete Horom, cujo nome literalmente significa casa na caverna e eram dois postos militares muito importantes na antiguidade (2 Cr 8.5).
É notável que a gente nem repara na riqueza de textos pequenitos escondidos nas Escrituras como a breve história de Sheerá. Uma mulher construtora pode parecer extraordinário naquele tempo. Alguns comentaristas que pesquisei dizem que ela não deve ter edificado, mas algum de seus descendentes. Pura especulação. Mais fácil ficar com este texto que afirma, extraordinariamente, que uma mulher edificou três cidades. Tão extraordinário que só pode ser verdade!
Também é extraordinário que Berias, que poderia ter ficado deprimido com toda a tristeza em torno de sua família e de seu próprio nascimento, teve uma filha e a desafiou a ir muito mais além do que, certamente, ele recebeu de estímulo de seu entristecido pai. Sinal fundamental de que podemos mudar nossas trajetórias e que Deus está aqui, definitivamente, com interesse em nos ajudar a fazer isso.
A desgraça poderia ter sido infértil. Poderia ter morrido em autocomiseração. Poderia ter sucumbido a problemas de autoestima. Mas decidiu gerar e gerar para uma nova vida. A desgraça deu vida à nobreza, assumiu o conceito de família ao chamar a filha de parenta e ajudou-a a marcar seu nome na história do povo de Deus. Sheerá é uma mulher de quem não sabemos quase nada pessoalmente, mas cujo legado marcou importantes vitórias do povo de Deus. A gente nunca sabe, de verdade, o que está edificando hoje e o que isso significará amanhã... (Bispa Hideide Brito Torres)

sábado, 30 de abril de 2022

Só sei de uma coisa: eu era cego e agora vejo

Certo dia, fui visitar a célula do meu marido. Durante o bate-papo do compartilhamento da palavra, a anfitriã comentou que admira muito as pessoas que conseguem, com naturalidade, trazer Jesus para todos os assuntos do dia. Uns dias depois, lendo alguns versos de João, me deparei com o testemunho do ex-cego, curado em Siloé e me lembrei desse comentário. De fato, a simplicidade parece algo perdido nos nossos dias. Estamos sempre esperando discursos elaborados de toda parte. Quando eles vêm, parecem falsos, deslocados da realidade. E nós mesmos/as podemos nos sentir assim quando falamos de Jesus. Sentimos que apenas as pessoas com curso de teologia ou bem-preparadas podem fazê-lo. Queremos transformar tudo em grandes sermões e que luzes coloridas apareçam ao nosso redor, ao lado de uma boa banda gospel, para a gente sentir que está na hora de "falar de Jesus" com alguém. Talvez aí resida o erro. Somos, como aquele ex-cego, incapazes de falar de Jesus, isso mesmo! Ele sempre vai permanecer, de certo modo, na aura do mistério para nós. Talvez os seus contemporâneos tivessem mais informações do que nós. Como o ex-cego, topamos com Ele e fomos atingidos por sua graça e amor, mas não podemos ir muito além. Quando perguntam ao cego: "Onde está ele?", o moço responde: "Não sei". Em todo o texto, o ex-cego só afirma e reafirma a mesma coisa: "Eu era cego e agora eu vejo". Acho que o moço Jesus é profeta. "Se é pecador, não sei. Só sei isso: eu era cego e agora eu vejo". Você e eu, para fazer diferença na vida do amigo, da vizinha, do parente sofrido, da jovem deslocada, da vítima da violência e do bullying ou mesmo do sujeito que vive sua vida tranquilamente, não precisamos de muita coisa. Lá na frente, todo estudo e conhecimento vão ajudando muito. É claro que podemos melhorar, crescer, conhecer mais de Deus. Mas para começar, só temos de ter o básico. Não posso lhe falar tudo sobre Jesus. Na verdade, a maior parte de tudo que ele é, eu desconheço e não posso alcançar. Mas uma coisa eu posso. Posso te falar de mim mesma antes e depois de Jesus. Posso te dizer que, de muitos modos, eu também era cega e agora vejo. Posso te contar como ele me dá forças para fazer coisas impossíveis. Como, sem ele, eu submergiria em meus pavores e medos. Como ele já me segurou em curvas escuras da estrada, sobre pontes trêmulas e em momentos de total desespero. Como ele me consola quando as coisas próprias até da igreja me desafiam. Eu não sei o que você gostaria de ouvir sobre Jesus. Os fariseus queriam muitas respostas. O povo estava curioso. Mas o cego só podia contar o que tinha vivido. Sendo fiel nisso, quando ele se reencontra com Jesus e este se revela como o "Filho do homem", o cego crê e adora, porque já tinha sido objeto da graça. E então ele se tornou referência para todos os demais ao seu redor. Não existe nada mais natural para falar de Jesus, se a gente falar da vida da gente. É onde de fato faz diferença, porque é na vida que estão nossas grandes perguntas, dores e anseios. Depois, quando essas coisas forem supridas, todo o restante do aprendizado será para enriquecer, alegrar, matar outras curiosidades. Mas, por enquanto, um "antes" e um "depois" de Jesus, na sua vida, que é o que o seu amigo e amiga conhece, já faz toda a diferença. Comece por aquilo que você já conhece de Jesus. O restante, no tempo dele, Ele mesmo vai contar.

quinta-feira, 22 de abril de 2021

A síndrome de Cades Barneia

 

Chegando os filhos de Israel, toda a congregação, ao deserto de Zim, no mês primeiro, o povo ficou em Cades; e Miriã morreu ali, e ali foi sepultada. E não havia água para a congregação; então se reuniram contra Moisés e contra Arão. E o povo contendeu com Moisés, dizendo: Quem dera tivéssemos perecido quando pereceram nossos irmãos perante o Senhor! E por que trouxestes a congregação do Senhor a este deserto, para que morramos aqui, nós e os nossos animais? (Números 20.1-4)

 

Quando passamos por um tempo tão dificultoso e desértico quanto o tempo atual, especialmente o tempo da nossa Igreja, a situação do povo de Israel, por rápida analogia, fica voltando à minha mente. Esses dias, ao meditar sobre isso, um amigo me lembrou do episódio de Cades Barneia. Naquela ocasião, doze espias foram mandados para verificar a terra na qual iriam entrar. A ideia é que a travessia seria rápida. Mas o resultado da incursão exploratória foi tão dramático que eles ficaram 40 anos dando voltas no deserto, até que uma geração perecesse. É uma história terrível de se contar. Terrível de lembrar. Mortal de viver. E quando eu voltei ao texto bíblico para estuda-lo, eu me deparei com algumas revelações profundas.

Cades Barneia é o lugar em que a profecia morreu: Miriam morreu em Cades. Ela era profetisa. Ela foi a pessoa que, tendo uma percepção especial de Deus ainda menina, levou Moisés e o colocou diante da princesa para que ele pudesse ser poupado. Miriam compôs o cântico de livramento diante do Mar de Juncos. Com ela estavam diversas promessas de Deus. Ela passou 80 anos esperando Moisés se revelar como a pessoa chamada por Deus para liderar o Êxodo. A profecia tem resistência, resiliência e paciência. Enquanto as coisas não acontecem, a profecia anima, ampara, faz esperançar. Mas quando a profecia morre, o povo precisa entender que está sem a direção da voz de Deus. E quando o povo para de ouvir a voz de Deus, vai ouvir a voz do medo, da dispersão, da desagregação.

Cades Barneia é o lugar em que uma parada não devia ter acontecido: Talvez o problema tenha sido que o povo acampou num lugar e ficou ali parado. Há momentos em que precisamos parar, refletir. Mas há paradas que liberam a estagnação. Há paradas que promovem a procrastinação. Há paradas que incitam à murmuração. Cades Barneia foi o lugar em que a mente ociosa do povo voltou-se para o passado glorioso: “Ah, que tempo bom era o tempo da escravidão. A gente penava, mas pelo menos tinha carne”. O passado glorioso é assim. Ele apaga o que a gente não quer lembrar, para que fiquemos com uma impressão parcial das coisas. Ele nos apega ao que já não existe. Se foi bom ou ruim, a verdade é que não podemos voltar mais atrás. Agora só existe o para frente. E se ficamos com medo de avançar, e não podemos mais retroceder, o que sobra é a inércia. Meu irmão, minha irmã! A inércia no deserto significa morte! E não podemos nos desvencilhar do fato de que essa inércia, essa indecisão é resultado direto da morte da profecia. Quem não tem a palavra de Deus brandada em seu coração pelo Espírito Santo apega-se ao passado e à nostalgia. Quem tem profecia tem passado para dizer que Deus fez e tem futuro para crer que ele fará!

Cades Barneia é o lugar em que uma versão da realidade prevaleceu sobre a outra: Não era mentira que os inimigos eram poderosos. Não era mentira que a situação era crítica. Não era mentira que o povo era pouco, inexperiente e despreparado para um enfrentamento daqueles. Sim, o povo da terra era alto. Sim, a coisa seria muito difícil. Não era possível não entrar na batalha. Mas esta é uma versão da realidade, não o seu todo. Algo pode ser verdade e ainda assim não ser o todo... Veja: havia uma promessa clara de Deus, que estava pairando no ar. O povo perdeu isso de vida porque deixou a profecia morrer! O que eles não percebiam é que Deus não deixa de falar quando ele quer! Durante o tempo de vida de Moisés, ele não parece, nos textos bíblicos, ter sido visto como um profeta. Quando ele morre, o autor deuteronomista dá a ele este título. A gente mesmo hoje o reconhece como libertador, como legislador, mas damos pouca importância porque já definimos o que é profecia e ele não parece muito isso! Mas um profeta é alguém que fala com Deus, Deus fala com ele e ele fala de Deus! Isso acontecia! E Deus estava falando pela boca de Moisés! Mas o povo estava com a face da morte diante de si. Estremeceu. Perdeu a perspectiva. Diminuiu a realidade. O povo inimigo era grande, mas Deus estava com eles. E eles leram assim: Deus estava com eles, mas o inimigo era grande. O lugar do mas, eu já disse antes, faz muita diferença...

Cades Barneia é o lugar da decisão: Esse preciso momento é o nosso Cades Barneia. Cades Barneia, traduzido por lugar da decisão. Por não ter querido enfrentar seus inimigos, Israel pediu passagem por outro caminho, para o rei de Edom, mas ele se recusou. O povo de Israel fugiu da batalha principal, mas encontrou várias outras pelo caminho do escape. O caminho do escape, o atalho que se pega para ter vantagem ou a volta que se dá para não fazer um enfrentamento difícil, ele nunca é um salvo conduto. Ele traz outras armadilhas e perigos que a gente não atravessaria se mantivesse o curso original, para cujos perigos já havíamos recebido proteção e provisão. Cades Barneia é lugar de decisão porque escolhemos o que fazer. Mas pode ser traduzido por lugar de julgamento, que é onde aqueles que descreem encontram o fim de sua jornada, são retirados das promessas. Também é traduzido por lugar da separação, porque fica evidente quem permanece e quem sai, quem persiste e quem desiste, quem vence e quem é derrotado.

Este tempo, esta situação, esta crise, este caos... ele é o nosso Cades Barneia. Podemos sair daqui e entrar nos frutos e no leite e mel. Ou podemos continuar a dar voltas pelo deserto. Chegaremos à terra prometida? Chegaremos, porque Deus é fiel na nossa infidelidade. Ele quer um povo para si e ele vai ter o povo. Mas este povo pode chegar menor lá. Este povo pode morrer no deserto e outra geração apenas se aproveitar do fruto. Eu não quero isso pra mim. Você quer? Ficar pelo caminho (literal ou figurativamente que seja)? Eu não. Eu quero subir ao monte da minha promessa. Eu quero conquistar minha própria herança. Eu quero viver e contar os feitos do Senhor.

O pregador Valdir Ávila, na revista Impacto, descreveu a situação de incredulidade e a definiu como “Sindrome de Cades Barneia”. Eis suas palavras: “O que é a Síndrome de Cades-Barnéia que pode novamente nos impedir de tomar a decisão certa? É olhar a situação à nossa frente com olhos humanos; ao ver que a nossa força é totalmente insuficiente, o medo toma conta e nos derrota, impedindo Deus de realizar seu plano em nós. É exatamente este estado mórbido, indeciso e apático que é explicito na vida da igreja atual e que denuncia que ainda não estamos prontos para um estágio maior”.

Por hoje, esta batalha parece difícil, mas eu sei que sem passar por ela, vou ter de dar voltas que Deus não precisa que eu dê, mas nas quais eu mesma me meti. Há dignidade na luta. Há dignidade no reconhecimento dos erros e no recomeço. Há dignidade e até proteção, porque no meio da espionagem Deus prepara até poços nos quais a gente se esconda na hora pior. Há proteção, mas não há fuga, irmãos e irmãs. Há reparações a serem feitas. Há perdões a serem dados e liberados. Há uma fé a ser adquirida e uma estratégia a ser praticada. Há uma remissão de pecados a acontecer.

Precisamos crer, desesperadamente, integralmente, despojadamente. Crer. Crer e avançar sobre gigantes. Fazer o correto, do jeito de Deus, nos termos de Deus, por mais que doa, por mais que desafie e seja difícil até o fim. O fim não é o deserto. É a terra prometida. Mas você e eu não teremos o mel sem passar pela prova necessária deste deserto. A igreja precisa decidir se vai confiar em Deus e enfrentar, ou se vai buscar rotas de fuga. O tempo é este. Não deixe a profecia morrer. Não pare antes da hora. Não veja as coisas por perspectivas limitadas. Não tome a decisão errada. Creia!

domingo, 23 de fevereiro de 2020

Noé achou graça aos olhos do Senhor

A quem chamou Noé, dizendo: Este nos consolará acerca de nossas obras e do trabalho de nossas mãos, por causa da terra que o Senhor amaldiçoou. (Gênesis 5.29)
Noé achou graça aos olhos do Senhor. (Gênesis 6.8)

Nossa célula se propôs ao desafio de ler a Bíblia toda em um ano. Eu arrumei um caderninho com a disposição de escrever à mão algumas inspirações que os textos me trouxessem, como modo de pensar mais devagar, porque se eu fosse digitar tudo não caberiam no mundo os livros que seriam escritos dessas divagações bíblico-teológicas... mas vá.
Relendo o caderninho hoje, porque já estamos pelos meios do Êxodo (a jornada começou no dia 05 de fevereiro), vi algumas coisas que anotei sobre Noé e queria compartilhar com vocês, porque são muito bacanas... hehe!
Primeiro, a gente sabe que os judeus têm um lance com os nomes e as situações. Por isso, especialmente no AT, qualquer estudo de personagem vai passar necessariamente pelo significado do nome do sujeito. Este nome pode ser atribuído por um evento marcante, um desejo profundo ou qualquer coisa que fosse relevante no momento do nascimento.
Segundo o dicionário online de significados de nomes, "Noé é a variação em português do nome hebraico No'ah. É um nome bíblico que teria surgido a partir da palavra hebraica noach, que significa “descanso”, “repouso”, “de longa vida”. (https://www.dicionariodenomesproprios.com.br/noe/).
Quando vamos ao texto bíblico, percebemos que Lameque, pai de Noé, lhe dá este nome como um desejo de futuro. É um nome com uma bênção. Que Noé fosse uma pessoa capaz de romper ciclos negativos. No contexto das genealogias apresentadas, vemos que depois da expulsão de Adão do paraíso, a vida ficou muito dura. O princípio da geração dos alimentos é narrado sucintamente em Gênesis: a agricultura com Caim, a pecuária de pequeno porte com Abel. Como o povo de Israel futuramente se estabelecerá como pequenos fazendeiros e pastores de ovelhas e gado miúdo, é até interessante que estejam relacionados com Abel, cujo nome significa "fôlego, vapor, nada"... Os pastores são figuras descartáveis ao longo da história, vêm e vão, estão na base da atividade econômica mas não são relevantes no todo da sociedade primitiva (os trabalhadores braçais, de modo geral). Mas isso é outra história.
A história que eu estava contando era a de como eu me apercebi, de repente, que a bênção de Lameque sobre seu filho Noé, a partir do nome dele, moldou a trajetória do nosso primeiro herói bíblico. Noé viria para dar descanso depois de tempos difíceis, Noé viria para ser uma água fresca no deserto da terra amaldiçoada pela ausência de Deus. E a Bíblia coloca ali, sutilmente para nós: "Deus achou graça em Noé; Deus se agradou dele".
Mesmo quando a maldade impera, que é o contexto de Gênesis 6, Noé se distancia dela e se destaca aos olhos de Deus. E eu quero crer que isso é mérito da bênção de seu pai. Do desejo de seu pai. De como Lameque impregnou seu filho com a ideia do descanso, do remanso, da paz. Em tempos de escuridão, incutir esse sentido na vida da juventude é tarefa de gente que já entendeu que não existe outro caminho. Estamos preparando nossos filhos e filhas para a vida ou só para o mercado de trabalho? Quando se trata de pensar na vida deles, pensamos em como se sustentarão financeiramente ou como enfrentarão um mundo de caos, no qual não há um justo sequer?
Com Noé, a terra encontrou alívio. Como um protótipo do próprio Cristo, a obra de salvação efetuada por Noé mudou o rumo dos acontecimentos. Deus aspirou o cheiro do sacrifício depois do dilúvio e disse: "O ser humano é mau no íntimo desde pequeno, mas eu nunca mais amaldiçoarei a terra por causa dele" (Gn 8.21). Por causa de Noé, houve um tempo de paz e de novas possibilidades.
Apesar da maldade que reina no mundo, eu quero abençoar as minhas filhas. Pensei nisso quando dei nomes a elas. Intencionalmente, eu quis nomes que indicassem a elas que não importa o que aconteça, eu as vejo como dignas de amor e como presentes de Deus para mim. Sei que tenho muitas falhas como mãe. E que ainda tenho uma jornada para completar. Queria ter feito muita coisa diferente. Mas de uma coisa elas podem ter certeza: quando elas nasceram, assim como Lameque, tudo o que eu quis é que esta terra fosse mais abençoada por causa delas e para elas.
Ler a história de Noé me lembrou de que Deus tem prazer em acolher as palavras de bênçãos que proferimos e transformar a história das pessoas a quem amamos. Ainda que o passado de Lameque tivesse sido duro e difícil, que ele percebesse a dor de viver numa terra amaldiçoada pelo pecado, ele creu na graça de Deus e profetizou sobre seu filho um tempo novo.
Sem conhecer Jesus, Lameque desejou tudo isso. Agora então, no tempo da revelação de Cristo, em que tudo é muito mais fácil de ser compreendido e o acesso a Deus é direto por meio de seu filho e nosso irmão mais velho, quanto mais eu e você podemos viver vidas abençoadas!
Deus quer nos abençoar. Jesus proveu os meios para isso. Eu me alegro todos os dias, quando penso que, nas minhas dificuldades, existe alguém que me dá a mão e me sustenta. Quero muito que você possa experimentar isso também. O amor de Deus, em Cristo, está acima de qualquer maldição ou pecado. O amor de Deus, em Cristo, renova tudo. (Bispa Hideide Brito Torres)

quinta-feira, 8 de fevereiro de 2018

Os quatro pilares de uma igreja saudável (Atos 2.42)

Eles perseveravam na doutrina dos apóstolos e na comunhão, no partir do pão e nas orações. (Atos 2.42)
O texto de Atos dos Apóstolos contempla, nos seus primeiros capítulos, uma visão geral dos primórdios da igreja em Jerusalém. Com o jeito jornalístico de Lucas, ele relata algumas coisas em detalhes e outras trabalha como resumos, como quando, no seu evangelho, nos conta que Jesus curou muitas pessoas, expulsou muitos demônios, ensinou muitas coisas e ia por toda a parte fazendo o bem. Desta forma, ele ressalta a prática geral e destaca algumas particularidades que mais de perto queria ensinar aos que o lessem.
Em Atos 2, os detalhes versam sobre a descida do Espírito Santo, o subsequente discurso de Pedro e o batismo dos três mil. A partir daí, temos uma panorâmica de uma igreja que cuidava dos vários aspectos da vida de seus integrantes, culminando com o verso 47, acerca do crescimento do movimento.
No verso 42, temos os pilares sobre os quais se construiu a vivência eclesial nascente. Nele, estão princípios que norteiam uma igreja saudável. Começamos pela perspectiva da perseverança. A construção de uma identidade de grupo ou a consolidação de uma mudança de vida pela conversão não são coisas de uma hora ou duas, de um encontro de fim de semana ou de cursos rápidos de primeiros passos. Trata-se de novos hábitos espirituais que precisam de tempo e de intencionalidade. A perseverança nesses quatro pilares garantiu à igreja de Jerusalém crescimento numérico, simpatia do povo, confirmação das promessas divinas e relevância social, entre outros aspectos de sua bem-sucedida existência.

Na doutrina dos apóstolos
A doutrina tem a ver com o correto crer, entender e explicar a fé. O conjunto dos ensinos que fomenta a identidade daquele povo, como a encarnação de Cristo, sua ação salvadora, o batismo com água, a unção do Espírito Santo, a criação do mundo por Deus são pilares doutrinários. A doutrina requer conhecimento, estudo e tem a ver com a aceitação intelectual do que está sendo ensinado. Por isso, os apóstolos “ensinam” a doutrina. O ensino, uma vez apreendido, gerará novas formas de crer e de atuar no mundo de modo pleno. Para nossos dias e as formas de ser igreja que algumas vezes encontramos, a doutrina tem se tornado um impedimento à adesão das pessoas. Se a doutrina contraria sua forma normal de conduzir a vida ou se exige dela uma nova forma de pensar, a pessoa tem resistência. 
Muitas coisas que ocorrem no meio evangélico hoje são derivados do fato de que a doutrina não é bem conhecida, nem bem definida. Para a igreja primitiva, isso precisava ser logo resolvido. Um exemplo foi o Credo Apostólico, com suas frases objetivas sobre os princípios de fé da Igreja Primitiva. Ele era usado em forma interrogativa para que os novos membros respondessem antes de serem recebidos. É por isso que não se pode experimentar o conteúdo da doutrina de modo emocional, sob comoção ou apelos psicológicos. A doutrina requer sentar-se, estudar, refletir. É uma parte fundante e não por acaso ela vem em primeiro lugar na lista dos itens a se perseverar em Atos 2.
Então, em termos de doutrina, recebemos uma convocação profunda: Queremos doutrina ou queremos emoção? Queremos crer ou queremos sentir? Porque uma igreja cujas emoções a conduzem nos aspectos mais essenciais de sua fé, que a todo tempo passa por revisões ou atualizações doutrinárias conforme o gosto desta ou daquela geração corre o risco de perder sua identidade ao longo dos anos. Não que não possa atualizar sua linguagem ou sua forma de expressar sua fé, pois o estudo leva inevitavelmente a melhores elaborações daquilo que cremos. Mas isso como resultado de reflexão teológica e eclesiológica, não como modismos para fazer o que é politicamente correto, que ofenda menos às pessoas ou que promova as manifestações extáticas ou sensitivas que ocorrem no momento mas que não levam à consolidação de sua conversão.

Na comunhão
A contrapartida da doutrina é a comunhão. É no relacionamento amoroso com outras pessoas que evitaremos o risco do legalismo e do farisaísmo, que é uma doutrina descolada ou deslocada da vida. A doutrina, em sua vertente prática, encontra na comunhão suas formas de transmissão e de crescimento mútuo. É a comunhão que permite que a doutrina exerça seu papel santificador na vida do cristão e da cristã, pois, como um aspecto do discipulado, a comunhão permite o apoio, a correção, o suporte, a orientação e o incentivo ao avanço de cada membro do corpo de Cristo.
Perseverar na comunhão num ambiente tão variado e cheio de influências como era o mundo de Jerusalém era uma questão fundamental. Caso contrário, os muitos pensamentos, culturas e formas de ver a vida poderiam desviar a igreja de sua missão, levando as pessoas ao afastamento e ao isolamento. Sempre menciono que existem pessoas na vida com as quais já briguei muito para continuar sendo amiga. Para mim, isso significa perseverar na comunhão: entender e superar as diferenças para acolher e afinar as semelhanças, no amor de Cristo.
É na comunhão, que ocorre também no culto, que temos a oportunidade de exercer nossas emoções de modo saudável, nos termos de Romanos 12 e de 1 Coríntios 12, para que todas as pessoas possam ser abençoadas. O equilíbrio entre doutrina e comunhão garante maturidade na fé.

Nas orações
As orações incluem todas as formas de espiritualidade e piedade da igreja primitiva. Eram os cultos, as reuniões no templo, a vida devocional pessoal e familiar. Perseverar nas orações significa reconhecer e buscar o sobrenatural de Deus para a vida e a obra da comunidade. Realizar as coisas apenas na capacidade humana certamente nos trará muitos resultados bons, pois as pessoas são cheias de talentos, capacidades, têm interesse em fazer o bem e querem contribuir. Mas a transformação vital vem do poder sobrenatural de Deus, o qual só pode ser acessado e experimentado por nós numa espiritualidade saudável. Não podemos abrir mão das orações, da meditação, da leitura bíblica, do jejum e outras práticas que possam nos conduzir a uma maior sensibilidade ao Espírito Santo. Essas práticas variam de pessoa para pessoa e até de cultura para cultura, mas estão presentes em todos os povos e devem ser desenvolvidas pelos cristãos e cristãs em toda parte.

No partir do pão
A contrapartida da espiritualidade é a solidariedade, expressa no partir do pão. Essa expressão aparece em diversos textos do mundo do Novo Testamento e tanto significa a ceia do Senhor como, em alguns casos, fala da distribuição de alimentos aos mais pobres e do cuidado para com a saúde e o bem-estar das viúvas e dos órfãos. A igreja tem um papel preponderante na questão do cuidado com o ser humano. A Igreja Metodista em particular tem uma história de levar as pessoas a estudar, a trabalhar, a resgatar suas famílias, a libertar-se dos vícios, a qualificar-se para o mercado de trabalho, a desenvolver higiene e autocuidado... as crianças recebiam orientação educacional diversificada, eram acolhidas e cuidadas... No livro “A reunião de classe”, Henderson conta que nenhuma casa era tão limpa e nenhuma criança era mais bem-cuidada do que aquelas dos metodistas! Até nos aspectos básicos esses cuidados revelavam que a fé repercute no cuidado para com quem precisa. O equilíbrio entre orações e partir do pão garante maturidade missionária.

Por causa desses pontos nos quais a igreja perseverava, ela conseguia um equilíbrio saudável para crescer. Creio que o próprio John Wesley também vislumbrou no “quadrilátero wesleyano” esses aspectos basilares para um avanço saudável na fé. Somos desafiados e desafiadas hoje a desenvolver formas pelas quais possamos seguir neste quadrilátero apostólico – doutrina, comunhão, partir do pão e orações – em nossas vivências, de modo a apontar uma igreja que seja uma, para que o mundo creia.

O povo do coração aquecido

“O justo viverá pela fé” (Romanos 1:17, Habacuque 2:4, Gálatas 3:11, Hebreus 10.38) Uma experiência de mais de um dia John Wesley era um jov...